Conferência: O Tempo Nas Cidades
Milton Santos (GET/USP: 29 de Maio de 1989)
Imagem: Tecidos, Belarmino Mariano, Guarabira, 2011.
Milton
Santos foi professor titular de Departamento de Geografia, da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, falecido em
24 de junho de 2001.
Texto
extraído da transcrição da conferência do autor na mesa-redonda "O tempo
na Filosofia e na História", promovida pelo Grupo de Estudos sobre o Tempo
do Instituto de Estudos Avançados da USP em 29 de maio de 1989. A transcrição completa foi publicada na
Coleção Documentos, série Estudos sobre o Tempo, fascículo 2, em Fevereiro de
2001.
O
texto que segue é um esboço de uma velha ambição que jamais pude realizar
(espero poder realizá-la ainda) que é oferecer um curso de pós-graduação sobre
o tempo. Ainda que não seja filósofo, sou geógrafo, parto da idéia de que a
Geografia é uma filosofia das técnicas, considerando a técnica como a
possibilidade de realização da História, de mudança da História, de
visibilidade dessas rupturas.
A
Geografia pretende utilizar como um de seus campos de trabalho ou como uma das
geografias possíveis, aquela que se preocupa com a apreensão do contexto dos
atuais e diferentes momentos, o que faz dela, de alguma maneira, a história de
cotidianos sucessivos. O entrosamento entre técnica e História permite o
entendimento do que se passou, do que se passa e eventualmente do vai se
passar, quando as técnicas se tornam um conjunto unificado e único, movidas por
um motor também único, o que permite uma visibilidade do futuro.
O
tempo pode ser encarado das mais diversas maneiras; eu, como não sou filósofo,
repito, apenas vou tomar alguns filósofos como ponto de partida, como ajuda na
minha conversa. Eu lembraria, por exemplo, o que li em Baillard, quando ele
divide o tempo em três tipos: o tempo cósmico, o tempo histórico e o tempo
existencial. O tempo cósmico, da natureza, objetivado, sujeito ao cálculo
matemático; o tempo histórico, objetivado, pois a História o testemunha, mas no
qual há cesuras, em vista de sua profunda carga humana; e o tempo existencial,
tempo íntimo, interiorizado, não externado como extensão, nem objetivado, é o
tempo do mundo da subjetividade e não da objetividade. Mas, esses tempos todos
se comunicam entre eles, na medida em que o tempo é social. Parafraseando
Heidegger, para quem sem o homem não há tempo, é desse tempo do homem, do tempo
social contínuo e descontínuo, que não flui de maneira uniforme, que temos de
tratar. E é por aí que se vê que esses diversos tipos de tempo convergem e
divergem. Convergem na experiência humana e divergem na análise.
Do
tempo matemático, tempo cósmico, tempo do relógio, ao tempo histórico, vai toda
uma evolução que é assinalável ao longo da História. O relógio que é descoberto
num determinado momento da História, é redescoberto neste século com o
taylorismo e depois com o fordismo; um tempo que é medida do relógio, se não o
enchermos dessa substância social. O tempo individual, tempo vivido, sonhado,
vendido e comprado, tempo simbólico, mítico, tempo das sensações, mas com
significação limitada, não é suscetível de avaliação se não referido a esse
tempo histórico, tempo sucessão, tempo social, o ontem, o hoje, o amanhã. Essas
sequências, que nos dão as mudanças que fazem história, criam as periodizações,
isto é, as diferenças de significação.
Nesse
momento, eu gostaria de me referir a um filósofo latino-americano, Sérgio Bagú,
que distingue entre o tempo como seqüência - o transcurso - o tempo como raio
de operações - o espaço - e o tempo como rapidez de mudanças, como riqueza de
operações. Aí se vê que o tempo aparece como sucessão, permitindo uma
periodização; depois aparece como raio de operações, isto é, o tempo que nos é
concomitante, que nos é coetâneo, ou que foi coetâneo de uma outra geração, e
essas duas acepções do tempo nos permitem trabalhar não só o espaço geográfico
como um todo, mas a cidade em
particular. Há uma ordem do tempo que é a das periodizações,
que nos permite pensar na existência de gerações urbanas, em cidades que se
sucederam ao longo da História, e que foram construídas segundo diferentes
maneiras, diferentes materiais e também segundo diferentes ideologias.
Na
cidade atual, essa idéia de periodização é ainda presente; é presente nas
cidades que encontramos ao longo da História, porque cada uma delas nasce com
características próprias, ligadas às necessidades e possibilidades da época, e
é presente no presente, à medida que o espaço é formado pelo menos de dois
elementos: a materialidade e as relações sociais. A materialidade, que é uma
adição do passado e do presente, porque está presente diante de nós, mas nos
traz o passado através das formas: basta passear por uma cidade, qualquer que
seja, e nos defrontaremos nela, em sua paisagem, com aspectos que foram
criados, que foram estabelecidos em momentos que não estão mais presentes, que
foram presentes no passado, portanto atuais naquele passado, e com o presente
do presente, nos edifícios que acabam de ser concluídos, esse presente que
escapa de nossas mãos.
Na
realidade, a paisagem é toda ela passado, porque o presente que escapa de
nossas mãos, já é passado também. Então, a cidade nos traz, através de sua
materialidade, que é um dado fundamental da compreensão do espaço, essa
presença dos tempos que se foram e que permanecem através das formas e objetos
que são também representativos de técnicas. É nesse sentido que eu falei que a
técnica é sinônimo de tempo: cada técnica representa um momento das
possibilidades de realização humana e é por isso que as técnicas têm um papel
tão importante na preocupação de interpretação histórica do espaço.
Ora,
essas técnicas que nos trazem as periodizações, que nos permitem reconstituir
como aquele palimpsesto, que é a paisagem, a acumulação de tempos desiguais,
que é a paisagem urbana, como ela chega até nós, permitem-nos também passar dos
tempos justapostos aos tempos superpostos. Se considerarmos a história do
espaço e do tempo ao longo da História, vamos ver que ela é o passar de
momentos que se propuseram justapostos, isto é, em que cada sociedade que
criava o seu tempo através de suas técnicas, através do seu espaço, através das
relações sociais que elaborava, através da linguagem que conjuntamente criava
também, a tempos que não são mais justapostos, tempos que são superpostos, isto
é, aquele momento que o capitalismo entroniza, no qual há uma tendência à
internacionalização de tudo e que vai se realizar plenamente nos tempos dos
quais somos nós contemporâneos, onde há uma verdadeira mundialização.
Esse
momento no qual vivemos, para repetir Chesnaux, é de uma sociedade sincrônica,
integral, na qual o homem vive sob a obsessão do tempo, sociedade essa que é,
ao mesmo tempo, cronofágica. Nessa sociedade cronofágica, à qual o tempo cede,
nós encontraremos a cidade, tal como descrita por Baillard, no seu Cronópolis:
dizia ele que, no seu esplendor, essa cidade era como um organismo
fantasticamente complexo. Transportar a cada dia quinze milhões de empregados
de escritório, manter o serviço de eletricidade, de água, de televisão,
administrar essa nossa população, tudo isso dependia de um só fator: o tempo!
Esse organismo não poderia subsistir senão sincronizando estritamente cada
passo, cada refeição, cada chamada telefônica. Daí, houve necessidade de
descongestionar os horários, segundo a zona da cidade. Os carros tinham placas
de cores diferentes, de acordo com o horário em que podiam circular, e assim o
sistema se generalizou. Só se podia ligar a máquina de lavar, postar uma carta
ou tomar um banho, durante uma faixa determinada de tempo. Um sistema de cartas
coloridas e uma série de quadros publicados a cada dia, assim como programas de
televisão, permitiam a cada pessoa sua localização dentro daquela faixa de
tempo. Caso contrário, os fusíveis saltavam e a recuperação do sistema seria
muito cara. No edifício que, antigamente, era um dos maiores parlamentos do
mundo, isto é, o lugar onde se faziam leis, nesse décor, de estilo gótico
perpendicular, uma espécie de ministério do tempo estava pouco a pouco se constituindo,
em torno de um relógio gigantesco. Os programadores eram, de fato, os senhores
absolutos da cidade. E a totalidade da existência de cada um era impressa nos
boletins expedidos a cada mês pelo Ministério do Tempo.
Num
retrato de uma obra orientada para o futuro, vemos o retrato das cidades em que
vivemos. São Paulo que conheci quando jovem tinha relógios, mas aqueles
relógios eram apenas uma mostra da modernidade. São Paulo ainda não era uma
grande cidade, mas imitava os grandes centros para parecer também uma grande
cidade. Nesse entretempo, os relógios desapareceram de São Paulo, e
reapareceram agora, quando São Paulo se torna cronópolis. São Paulo se torna
cronópolis como qualquer outra grande cidade do mundo, ao mesmo tempo em que as
assincronias e as dessincronias se estabelecem. O império do tempo é muito
grande sobre nós, mas é, sobre nós, diferentemente estabelecido. Nós, homens,
não temos o mesmo comando do tempo na cidade; as firmas não o têm, assim como
as intituições também não o têm. Isso quer dizer que, paralelamente a um tempo
que é sucessão, temos um tempo dentro do tempo, um tempo contido no tempo, um
tempo que é comandado, aí sim, pelo espaço.
Nesse
momento em que o tempo aparece como havendo dissolvido o espaço, e algumas
pessoas o descreveram assim, a realidade é exatamente oposta. O espaço impede
que o tempo se dissolva e o qualifica de maneira extremamente diversa para cada
ator. Certo que Kant escreveu também que o espaço aparece como uma estrutura de
coordenação desses tempos diversos. O espaço permite que pessoas, instituições
e firmas com temporalidades diversas, funcionem na mesma cidade, não de modo
harmonioso, mas de modo harmônico. Também atribui a cada indivíduo, a cada
classe social, a cada firma, a cada tipo de firma, a cada instituição, a cada
tipo de instituição, formas particulares de comando e de uso do tempo, formas
particulares de comando e de uso do espaço. Não fosse assim, a cidade não
permitiria, como São Paulo permite, a convivência de pessoas pobres com pessoas
ricas, de firmas poderosas e firmas fracas, de instituições dominantes e de
instituições dominadas. Isso é possível porque há um tempo dentro do tempo,
quer dizer, o recorte sequencial do tempo; nós temos um outro recorte, que é
aquele que aparece como espaço.
Essa
temporalização, digamos assim, prática, como Althusser havia sugerido, aparece
nos contextos, que é o que a nós geógrafos interessa estudar, os contextos, a
sucessão de contextos, onde o tempo, à imagem de Einstein, se confunde com o
espaço, é espaço. O espaço é tempo, coisa que somente é possível através desse
trabalho de empiria que nos é admissível, concebendo a técnica como tempo,
incluindo entre as técnicas, não apenas as técnicas da vida material, mas as
técnicas da vida social, que vão nos permitir a interpretação de contextos
sucessivos. De tal maneira que o espaço aparece como coordenador dessas
diversas organizações do tempo, o que permite, por conseguinte, nesse espaço
tão diverso, essas temporalidades que coabitam no mesmo momento histórico.
É
esta a pesquisa que eu desejaria realizar, não sei se poderei fazê-la, estou
trazendo para discussão aqui neste seminário de trabalho, para ver se há
viabilidade. De tal maneira que não teríamos apenas, como Fernand Braudel,
nosso mestre, que foi o fundador da escola de História e Geografia da USP, as
noções de tempo longo e de tempo curto. Eu, modestamente, proporia que ao lado
dos tempos curto e longo, falássemos de tempos rápidos e tempos lentos.
A
cidade é o palco de atores os mais diversos: homens, firmas, instituições, que
nela trabalham conjuntamente. Alguns movimentam-se segundo tempos rápidos,
outros, segundo tempos lentos, de tal maneira que a materialidade que possa
parecer como tendo uma única indicação, na realidade não a tem, porque essa
materialidade é atravessada por esses atores, por essa gente, segundo os
tempos, que são lentos ou rápidos. Tempo rápido é o tempo das firmas, dos
indivíduos e das instituições hegemônicas e tempo lento é o tempo das
instituições, das firmas e dos homens hegemonizados. A economia pobre trabalha
nas áreas onde as velocidades são lentas. Quem necessita de velocidades rápidas
é a economia hegemônica, são as firmas hegemônicas. É para esta classe que tem
significação uma avenida como a dos Bandeirantes, ou estradas como a dos
Bandeirantes e a Anhanguera, que são estradas que sobretudo interessam aos
agentes hegemônicos e às pessoas ricas que usam melhor, do seu ponto de vista,
essas estradas. Do aeroporto ao centro da cidade vai-se muito depressa, criam-se
condições materiais para que o tempo gasto na viagem seja curto. Já entre os
bairros vai-se mais devagar, no sentido de que não há uma materialidade que
favoreça o tempo rápido.
Aqui,
a materialidade impõe um tempo lento. Isso quer dizer que os pobres vivem
dentro da cidade sob tempos lentos. São temporalidades concomitantes e
convergentes que têm como base o fato de que os objetos também têm uma
temporalidade, os objetos também impõem um tempo aos homens. A partir do
momento em que eu crio objetos, os deposito num lugar e eles passam a se
conformar a esse lugar, a dar, digamos assim, a cara do lugar, esses objetos
impõem à sociedade ritmos, formas temporais do seu uso, das quais os homens não
podem se furtar e que terminam, de alguma maneira, por dominá-los. Não naquele
sentido a que Maffesoli se reportou, quando disse que os objetos deixaram de
ser obedientes e passaram a nos comandar. Os objetos nos comandam de alguma
maneira, mas esse comando dos objetos sobre o tempo consagra, no meu modo de
ver, essa união entre o espaço e o tempo, tal como nós geógrafos o vemos, mas,
evidentemente não o espaço e o tempo dos filósofos tout court. Era o que eu
tinha a dizer, pedindo ajuda e sugestões para o projeto de pesquisa.
Obs.:
Como se trata de uma transcrição de conferencia, o texto segue sem as possíveis
referencias citadas pelo autor ao longo de sua apresentação.
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