Publicado em maio 18, 2011 por Niara de Oliveira
Eduardo Galeano - fonte da foto: http://hornosachiapas.files.wordpress.com/2011/05/galeano.jpg
A civilização que confunde os relógios com o tempo, o crescimento com o
desenvolvimento, e o grandalhão com a grandeza, também confunde a natureza com
a paisagem
.
Quatro frases que
aumentam o nariz do Pinóquio
1 – Somos todos culpados pela ruína do planeta.
A saúde do mundo está feito um caco. “Somos todos responsáveis”, clamam
as vozes do alarme universal, e a generalização absolve: se somos todos
responsáveis, ninguém é. Como coelhos, reproduzem-se os novos tecnocratas do
meio ambiente. É a maior taxa de natalidade do mundo: os experts geram experts
e mais experts que se ocupam de envolver o tema com o papel celofane da
ambiguidade. Eles fabricam a brumosa linguagem das exortações ao “sacrifício de
todos” nas declarações dos governos e nos solenes acordos internacionais que
ninguém cumpre. Estas cataratas de palavras – inundação que ameaça se converter
em uma catástrofe ecológica comparável ao buraco na camada de ozônio – não se
desencadeiam gratuitamente. A linguagem oficial asfixia a realidade para
outorgar impunidade à sociedade de consumo, que é imposta como modelo em nome
do desenvolvimento, e às grandes empresas que tiram proveito dele. Mas, as
estatísticas confessam.. Os dados ocultos sob o palavreado revelam que 20% da
humanidade comete 80% das agressões contra a natureza, crime que os assassinos
chamam de suicídio, e é a humanidade inteira que paga as consequências da
degradação da terra, da intoxicação do ar, do envenenamento da água, do
enlouquecimento do clima e da dilapidação dos recursos naturais não-renováveis.
A senhora Harlem Bruntland, que encabeça o governo da Noruega, comprovou recentemente
que, se os 7 bilhões de habitantes do planeta consumissem o mesmo que os países
desenvolvidos do Ocidente, “faltariam 10 planetas como o nosso para
satisfazerem todas as suas necessidades. ” Uma experiência impossível.
Mas, os governantes dos países do Sul que prometem o ingresso no
Primeiro Mundo, mágico passaporte que nos fará, a todos, ricos e felizes, não
deveriam ser só processados por calote. Não estão só pegando em nosso pé, não:
esses governantes estão, além disso, cometendo o delito de apologia do crime.
Porque este sistema de vida que se oferece como paraíso, fundado na exploração
do próximo e na aniquilação da natureza, é o que está fazendo adoecer nosso
corpo, está envenenando nossa alma e está deixando-nos sem mundo.
2 – É verde aquilo que se pinta de verde.
Agora, os gigantes da indústria química fazem sua publicidade na cor
verde, e o Banco Mundial lava sua imagem, repetindo a palavra ecologia em cada
página de seus informes e tingindo de verde seus empréstimos. “Nas condições de
nossos empréstimos há normas ambientais estritas”, esclarece o presidente da
suprema instituição bancária do mundo. Somos todos ecologistas, até que alguma
medida concreta limite a liberdade de contaminação.
Quando se aprovou, no Parlamento do Uruguai, uma tímida lei de defesa do
meio-ambiente, as empresas que lançam veneno no ar e poluem as águas sacaram,
subitamente, da recém-comprada máscara verde e gritaram sua verdade em termos
que poderiam ser resumidos assim: “os defensores da natureza são advogados da
pobreza, dedicados a sabotarem o desenvolvimento econômico e a espantarem o
investimento estrangeiro.” O Banco Mundial, ao contrário, é o principal
promotor da riqueza, do desenvolvimento e do investimento estrangeiro. Talvez,
por reunir tantas virtudes, o Banco manipulará, junto à ONU, o recém-criado
Fundo para o Meio-Ambiente Mundial. Este imposto à má consciência vai dispor de
pouco dinheiro, 100 vezes menos do que haviam pedido os ecologistas, para
financiar projetos que não destruam a natureza. Intenção inatacável, conclusão
inevitável: se esses projetos requerem um fundo especial, o Banco Mundial está
admitindo, de fato, que todos os seus demais projetos fazem um fraco favor ao
meio-ambiente.
O Banco se chama Mundial, da mesma forma que o Fundo Monetário se chama
Internacional, mas estes irmãos gêmeos vivem, cobram e decidem em Washington.
Quem paga, manda, e a numerosa tecnocracia jamais cospe no prato em que come.
Sendo, como é, o principal credor do chamado Terceiro Mundo, o Banco Mundial
governa nossos escravizados países que, a título de serviço da dívida, pagam a
seus credores externos 250 mil dólares por minuto, e lhes impõe sua política
econômica, em função do dinheiro que concede ou promete. A divinização do
mercado, que compra cada vez menos e paga cada vez pior, permite abarrotar de
mágicas bugigangas as grandes cidades do sul do mundo, drogadas pela religião
do consumo, enquanto os campos se esgotam, poluem-se as águas que os alimentam,
e uma crosta seca cobre os desertos que antes foram bosques.
3 – Entre o capital e o trabalho, a ecologia é neutra.
Poder-se-á dizer qualquer coisa de Al Capone, mas ele era um cavalheiro:
o bondoso Al sempre enviava flores aos velórios de suas vítimas… As empresas
gigantes da indústria química, petroleira e automobilística pagaram boa parte
dos gastos da Eco 92: a conferência internacional que se ocupou, no Rio de
Janeiro, da agonia do planeta. E essa conferência, chamada de Reunião de Cúpula
da Terra, não condenou as transnacionais que produzem contaminação e vivem
dela, e nem sequer pronunciou uma palavra contra a ilimitada liberdade de
comércio que torna possível a venda de veneno.
No grande baile de máscaras do fim do milênio, até a indústria química
se veste de verde. A angústia ecológica perturba o sono dos maiores
laboratórios do mundo que, para ajudarem a natureza, estão inventando novos
cultivos biotecnológicos. Mas, esses desvelos científicos não se propõem
encontrar plantas mais resistentes às pragas sem ajuda química, mas sim buscam
novas plantas capazes de resistir aos praguicidas e herbicidas que esses mesmos
laboratórios produzem. Das 10 maiores empresas do mundo produtoras de sementes,
seis fabricam pesticidas (Sandoz-Ciba-Geigy, Dekalb, Pfizer, Upjohn, Shell,
ICI). A indústria química não tem tendências masoquistas.
A recuperação do planeta ou daquilo que nos sobre dele implica na
denúncia da impunidade do dinheiro e da liberdade humana. A ecologia neutra,
que mais se parece com a jardinagem, torna-se cúmplice da injustiça de um
mundo, onde a comida sadia, a água limpa, o ar puro e o silêncio não são
direitos de todos, mas sim privilégios dos poucos que podem pagar por eles.
Chico Mendes, trabalhador da borracha, tombou assassinado em fins de 1988, na
Amazônia brasileira, por acreditar no que acreditava: que a militância
ecológica não pode divorciar-se da luta social. Chico acreditava que a floresta
amazônica não será salva enquanto não se fizer uma reforma agrária no Brasil.
Cinco anos depois do crime, os bispos brasileiros denunciaram que mais de 100
trabalhadores rurais morrem assassinados, a cada ano, na luta pela terra, e
calcularam que quatro milhões de camponeses sem trabalho vão às cidades
deixando as plantações do interior. Adaptando as cifras de cada país, a
declaração dos bispos retrata toda a América Latina. As grandes cidades
latino-americanas, inchadas até arrebentarem pela incessante invasão de
exilados do campo, são uma catástrofe ecológica: uma catástrofe que não se pode
entender nem alterar dentro dos limites da ecologia, surda ante o clamor social
e cega ante o compromisso político.
4 – A natureza está fora de nós.
Em seus 10 mandamentos, Deus esqueceu-se de mencionar a natureza. Entre
as ordens que nos enviou do Monte Sinai, o Senhor poderia ter acrescentado, por
exemplo: “Honrarás a natureza, da qual tu és parte.” Mas, isso não lhe ocorreu.
Há cinco séculos, quando a América foi aprisionada pelo mercado mundial, a
civilização invasora confundiu ecologia com idolatria. A comunhão com a
natureza era pecado. E merecia castigo. Segundo as crônicas da Conquista, os
índios nômades que usavam cascas para se vestirem jamais esfolavam o tronco
inteiro, para não aniquilarem a árvore, e os índios sedentários plantavam
cultivos diversos e com períodos de descanso, para não cansarem a terra. A civilização,
que vinha impor os devastadores monocultivos de exportação, não podia entender
as culturas integradas à natureza, e as confundiu com a vocação demoníaca ou
com a ignorância. Para a civilização que diz ser ocidental e cristã, a natureza
era uma besta feroz que tinha que ser domada e castigada para que funcionasse
como uma máquina, posta a nosso serviço desde sempre e para sempre. A natureza,
que era eterna, nos devia escravidão. Muito recentemente, inteiramo-nos de que
a natureza se cansa, como nós, seus filhos, e sabemos que, tal como nós, pode
morrer assassinada. Já não se fala de submeter a natureza. Agora, até os seus
verdugos dizem que é necessário protegê-la. Mas, num ou noutro caso, natureza
submetida e natureza protegida, ela está fora de nós. A civilização, que
confunde os relógios com o tempo, o crescimento com o desenvolvimento, e o
grandalhão com a grandeza, também confunde a natureza com a paisagem, enquanto
o mundo, labirinto sem centro, dedica-se a romper seu próprio céu.
Eduardo Galeano, jornalista e escritor, de Montevidéu – maio
de 2011.
Nenhum comentário:
Postar um comentário