Memórias de Joana Belarmino sobre nosso pai (in memoriam). Nestes dias de pandemia, senti muita saudade dos meus queridos pais. Enquanto isso, algumas pessoas teimam em colocar seus idosos em grande perigo com o Covid-19. Se você ainda tem um avô, avó, um pai ou mãe, um tio ou tia em grupo de risco, evite contaminar os seus queridos entes, pois a vida é nosso porto, se temos aqueles que amamos ao nosso lado.
Fonte: Portal do Nassif
Quando eu e o meu pai deixamos de nos falar,
naquela semana de maio de 1993, ele não passava de um amontoado de células,
músculos e pele, encharcados de medicamentos, na UTI do hospital de Bayeux, meu
pai a tocar às portas da eternidade, eu, presa a um profundo sentimento de
perda, desenraizamento, saudade antecipada.
Houve uma tarde, uma cena, a qual não conseguirei nunca esquecer. Eu e o meu
irmão Belo, cada um do lado da cama de utei, segurando as mãos do meu pai. De
repente Belo começou a cantar um aboio.
Na voz cortada pelo pranto, as notas longas do aboio, a tanger o gado
imaginário, a recordar o meu pai, moço, forte, o cigarro de palha entre os
lábios, o relho na mão, o olhar paciente a guiar seu rebanho.
Havia desamparo no canto do meu irmão. Mas havia também coragem. Coragem de
romper o dique da alma, destapar a rolha da dor, entregar ao meu pai, no
silêncio daquela uti, a última homenagem, cimentar aquela trajetória final do
velho Mariano com lembranças de força, de vida.
Meu pai amava o gado, a terra, as cercas que erguia para abrigar os rebanhos,
em tantos finais de tardes da sua vida de agricultor.
Tantos anos passados, a lembrança daquela tarde, daquele aboio, ainda acorda em
mim o rio das lágrimas que então despejei, como chuva a regar a saudade que já
se fazia posseira do solo da minha alma.
Naquela tarde, enquanto segurava os dedos calosos do meu pai, deixei que as
lembranças boas da nossa vida viessem todas para fora, empurrando a dor,
arrancando a tristeza, como se fora erva daninha. Lembranças da infância, das
covas de milho que meu pai me ensinou a cavar e semear. Lembranças da caverna
cheia de brisa onde eu e os meus irmãos passávamos o dia, enquanto o meu pai
trabalhava no roçado. Lembranças do seu velho chapéu, cheio dos melhores umbus
maduros. Lembrança melhor, do pão doce da feira de quarta-feira, que ele trazia
para nós.
Também naquela tarde, como agora, experimentei a saudade transformando-se,
suavizando-se, sendo como o crepitar doce e alegre das fogueiras que meu pai
fazia.
O longo aboio do meu irmão, como a querer tanger o meu pai à sua última morada,
a tarde quase a esmorecer, uma brisa suave a alisar as folhagens, eu a querer
novamente lavar os pés do meu pai, a limpar-lhe as sujidades da terra, depois
de um dia duro de trabalho.
Meu pai se foi, dois dias depois daquela tarde, e a doçura da saudade que
sinto, tem as notas plangentes daquele aboio, e o calor do crepitar das suas
fogueiras. Tantos anos passados, mas, vez em quando, surpreendo-me a sentir o
calor das suas mãos, conduzindo meu destino.
Um comentário:
Eita Joana e Belo, essa bateu profundo! Quase posso imaginar a sonoridade e a plástica do momento tão teus...
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