terça-feira, 7 de abril de 2020

O Longo Aboio


Memórias de Joana Belarmino sobre nosso pai (in memoriam). Nestes dias de pandemia, senti muita saudade dos meus queridos pais. Enquanto isso, algumas pessoas teimam em colocar seus idosos em grande perigo com o Covid-19. Se você ainda tem um avô, avó, um pai ou mãe, um tio ou tia em grupo de risco, evite contaminar os seus queridos entes, pois a vida é nosso porto, se temos aqueles que amamos ao nosso lado.

Fonte: Portal do Nassif
Quando eu e o meu pai deixamos de nos falar, naquela semana de maio de 1993, ele não passava de um amontoado de células, músculos e pele, encharcados de medicamentos, na UTI do hospital de Bayeux, meu pai a tocar às portas da eternidade, eu, presa a um profundo sentimento de perda, desenraizamento, saudade antecipada.
            Houve uma tarde, uma cena, a qual não conseguirei nunca esquecer. Eu e o meu irmão Belo, cada um do lado da cama de utei, segurando as mãos do meu pai. De repente Belo começou a cantar um aboio.
            Na voz cortada pelo pranto, as notas longas do aboio, a tanger o gado imaginário, a recordar o meu pai, moço, forte, o cigarro de palha entre os lábios, o relho na mão, o olhar paciente a guiar seu rebanho.
            Havia desamparo no canto do meu irmão. Mas havia também coragem. Coragem de romper o dique da alma, destapar a rolha da dor, entregar ao meu pai, no silêncio daquela uti, a última homenagem, cimentar aquela trajetória final do velho Mariano com lembranças de força, de vida.
            Meu pai amava o gado, a terra, as cercas que erguia para abrigar os rebanhos, em tantos finais de tardes da sua vida de agricultor.
            Tantos anos passados, a lembrança daquela tarde, daquele aboio, ainda acorda em mim o rio das lágrimas que então despejei, como chuva a regar a saudade que já se fazia posseira do solo da minha alma.
            Naquela tarde, enquanto segurava os dedos calosos do meu pai, deixei que as lembranças boas da nossa vida viessem todas para fora, empurrando a dor, arrancando a tristeza, como se fora erva daninha. Lembranças da infância, das covas de milho que meu pai me ensinou a cavar e semear. Lembranças da caverna cheia de brisa onde eu e os meus irmãos passávamos o dia, enquanto o meu pai trabalhava no roçado. Lembranças do seu velho chapéu, cheio dos melhores umbus maduros. Lembrança melhor, do pão doce da feira de quarta-feira, que ele trazia para nós.
            Também naquela tarde, como agora, experimentei a saudade transformando-se, suavizando-se, sendo como o crepitar doce e alegre das fogueiras que meu pai fazia.
            O longo aboio do meu irmão, como a querer tanger o meu pai à sua última morada, a tarde quase a esmorecer, uma brisa suave a alisar as folhagens, eu a querer novamente lavar os pés do meu pai, a limpar-lhe as sujidades da terra, depois de um dia duro de trabalho.

            Meu pai se foi, dois dias depois daquela tarde, e a doçura da saudade que sinto, tem as notas plangentes daquele aboio, e o calor do crepitar das suas fogueiras. Tantos anos passados, mas, vez em quando, surpreendo-me a sentir o calor das suas mãos, conduzindo meu destino.

Um comentário:

Dalmo Oliveira Silva disse...

Eita Joana e Belo, essa bateu profundo! Quase posso imaginar a sonoridade e a plástica do momento tão teus...

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