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Foto dos meus pai e mãe - Mariano Belarmino e Gessi Costa |
Texto de Joana Belarmino
Todo dia 1º de maio eu escrevo. Com as mãos, com os olhos, com o corpo todo
embebido da saudade dele. Como se estivesse brincando com legos, procuro na
memória pedaços da sua vida, refaço trilhas, conversas, silêncios, sofro de
novo com as suas crises asmáticas, sorrio com o mundo fantasmático que ele
despejava nos causos que contava.
Toda vez me surpreende a
força e a meiguice com as quais ele fora tecido. Nasceu a 1 de maio de 1915,
num mundo ainda assombrado com o pós-guerra, num pedaço de nordeste crestado de
sol, Riacho Fundo, onde água era produto de luxo.
Ali o futuro dos homens
estava cinzelado em poucas letras de pedra. Ser pobre, ser honesto, trabalhar,
de sol a sol, nas terras dos latifundiários, que apadrinhavam seus filhos,
apertavam suas mãos calosas, fiavam suas compras na feira de quarta-feira e
ficavam com quase todo o seu lucro que saísse da terra.
Hoje me veio uma
lembrança da infância. Estávamos nos anos sessenta. Localização, Angico Torto,
um sítio perdido no município de Itapetim, alto sertão de Pernambuco. Um dia
ele chegou em casa cansado da asma, a ira nos olhos, brigando pelo ar, gritando
contra a injustiça. Apanhei a história aos bocados, com minhas mãos de menina
pequena. Minha mãe se negara a votar no cabresto do fazendeiro, Joaquim Paulino
da Silva.
O homem rico, dono do
gado, dono da fazenda, veio a cavalo, interrompeu meu pai, na faina de fazer suas
cercas. Pediu a casa de taipa. Pediu a terra. Engoliu de um sorvo irado, anos e
anos de trabalho duro, de servidão, de valentia, de horas de conversas amenas,
latifundiário e meieiro preparando juntos a terra para a plantação do milho.
A ventania no sertão é
como um pássaro grande, batendo portas, retorcendo arbustos ressequidos,
atirando para longe a poeira escura. Foi como um redemoinho, a ira de Joaquim,
atirando meu pai com seus filhos, sua mulher e o voto insubordinado para longe
da pequena casa agora vazia das suas crianças.
A vida do meu pai
encerrou-se em 15 de maio de 1993. Oito dias antes, meu irmão, na uti do
hospital, cantou-lhe um aboio, enquanto eu, perdida em lágrimas, segurava sua
mão calosa e inerte.
Todo dia 1 de maio eu
escrevo, tentando aplacar um pouco a saudade dele. Em vão, as palavras chegam,
tisnadas de assombro, porque sentem que não são senão, uma quilha inútil, um
vão que jamais abrirá novamente o caminho por onde eu possa correr, abrir
porteiras, derrubar cercas, chegar de novo perto do meu pai.