Fonte da imagem: www.brasil247.com Por: Joana Belarmino de Sousa (Jornalista e professora da UFPB) |
(Ao meu irmão Belo Mariano, mais um doutor entre nós)
publicado originalmente em, 21 de outubro de 2006
Caro Amigo Marconi,
O capítulo da Agroecologia do agreste e brejo paraibano já tem mais umas duzentas páginas escritas. A defesa pode-se dizer, foi quente. Primeiro, por causa dos quase quarenta graus, num auditório cheio de gente, onde o ar condicionado não funcionava, segundo, porque os doutores da França e da Bélgica incomodaram-se com a largueza do meu conceito de território, uma elaboração construída entre os diques da geografia e da sociologia, onde eu pude envolver, entretanto, pequenos lugares individuais, como porteiras, recantos para conversar acocorados, plantas ressequidas a nos contarem, nas suas dobraduras de folhas, histórias de tempos verdes, esperanças de verdes tempos.
publicado originalmente em, 21 de outubro de 2006
Caro Amigo Marconi,
O capítulo da Agroecologia do agreste e brejo paraibano já tem mais umas duzentas páginas escritas. A defesa pode-se dizer, foi quente. Primeiro, por causa dos quase quarenta graus, num auditório cheio de gente, onde o ar condicionado não funcionava, segundo, porque os doutores da França e da Bélgica incomodaram-se com a largueza do meu conceito de território, uma elaboração construída entre os diques da geografia e da sociologia, onde eu pude envolver, entretanto, pequenos lugares individuais, como porteiras, recantos para conversar acocorados, plantas ressequidas a nos contarem, nas suas dobraduras de folhas, histórias de tempos verdes, esperanças de verdes tempos.
A história completa dessa defesa, eu
te conto quando a gente se encontrar. A razão dessa carta é para partilhar
contigo outra experiência. Lembra-te das noites em que saíamos pelas ruas de
campinas, a procurar lugares de silêncio, onde pudéssemos falar da filosofia
essencialista, onde pudéssemos proclamar concepções absurdas sobre territórios naturais
onde tudo se registrava, desde um peido a um pensamento filosófico? Pois eu
acho que visitei ontem um desses territórios, planície natural com sua árvore
frondosa, onde encontrei meu pai, ainda um rapazote, e vimos juntos um eclipse.
Vais acreditar? Vimos o eclipse de
37, numa espécie de crepúsculo amanhecido, imprimindo no tapete colorido das
folhas o jogo caleidoscópico da sombra e da luz. Vimos a coroa do sol e nos
escondemos na zona de sombra, quando a lua praticamente encobriu o astro rei. Como
foi isso? Eu te conto. Aconteceu dois dias depois da defesa. Tarde calma, nada
para fazer, leveza e nostalgia. Peguei a moto e fui passear ali pela ponta dos
seixas. Namoro com o sol das quatro da tarde, visão do mar, na sua calma e bela
azulidade. Depois me deu aquela vontade maníaca de abraçar uma árvore.
Recostei-me a um coqueiro, de olhos semi-cerrados, e fiquei escutando o mundo,
os sons das vozes distantes, a música das palhas a fazer dueto com a brisa
marinha. Te juro que naquele momento não estava pensando em nada de
essencialismo. E, de repente, sem nenhum aviso, senti uma espécie de beliscão,
no meu corpo inteiro. Senti como se o chão me escapasse dos pés, e no segundo
seguinte já não havia o mar, nem coqueiros, mas eu me via de pé, no pátio dos fundos
de uma casa de taipa, com roupas muito surradas, chinelo de couro, de tiras
largas, e um relho na mão.
Ouvi quando a porta da cozinha bateu,
e vi, aproximar-se, um jovem de pouco mais de vinte anos, cabelo liso, cortado
rente, sorriso aberto na boca de dentes levemente entramelados. E me disse,
como se desse continuidade a uma conversa interrompida: “Não vamos tanger os
bois agora. Quero ver o eclipse. É uma coisa medonha, o eclipse, tu vai ver”.
Caminhamos para o terreiro da frente, circundando a pequena casa.
O sol, alto no céu, parecia desmentir
qualquer possibilidade de encontro com a lua. Meu amigo chutava as pedrinhas do
chão e fitava o horizonte além, com seu olhar bovino. “Lai vem a lua,” dizia
ele meio ofegante. “Lai vem a lua tapar o sol”. E vi no seu rosto um misto de
medo e reverência. De repente lembrou-se de algo e correu para dentro. Voltou
logo, e me entregou uma agulha daquelas grossas, de costurar couro. “a gente
vai reparar pelo buraco da agulha. Pra não cegar.”
E ia me contar uma longa história
sobre eclipse e cegueira, mas parou de falar no meio da frase inicial, quando o
céu começou de repente a escurecer. Escutei assombrado os sons de um dia
anoitecido de repente, enquanto um frio cortante me fustigava a pele dos
braços. Galinhas cacarejantes à procura do poleiro, gado mugindo, como a pedir
cercado, e lá dentro, uma voz arrastada de mulher, a dizer uma espécie de prece
repetitiva: “Santa baiba são Geromo, santa baiba são Geromo, Jesuis Maria
José”. “Espia”, me disse o rapaz, e, pelo buraco da agulha, vimos a coroa do
sol, quando a lua o encobriu totalmente. Depois acompanhei sua vista e vi, no
chão, o jogo de sombra e luz refletindo-se no tapete natural dos grãos de
areia, das pedrinhas e folhas.
E de repente me veio a ideia de olhar o olho daquele jovem. Desviei o fundo da agulha da coroa do sol e tentei focar o seu rosto. E então soube que se tratava do meu pai, num tempo em que de meu pai não se tratava. Quis contar-lhe emocionado o segredo do nosso futuro, e então a agulha caiu-me das mãos, e me vi novamente recostado no coqueiro da Ponta dos Seixas, com os olhos cegos pela chuva quente das minhas lágrimas.
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