quarta-feira, 23 de maio de 2012

Réptil repetição


Por Carlos Azevedo (carlosazv@bol.com.br)

A lenta agonia da esfera em tons ouro, azul e rosa atrai uma multidão motorizada de gringos e nativos abastados. Nas palafitas-bares, eles se penduram sentados em cadeiras de plástico, desfrutando da barulheira que se tornou um dos pontos mais bonitos da cidade de Cabedelo. O sol constrangido, no meio de uma nuvem que insiste em atrapalhar a festa, vai caindo bêbado e entediado.
Uma procissão de barcos, canoas e até iates de pequeno porte vagueia pelo braço de rio. Os garçons completam o ar patético da cena retirando as sombrinhas das mesas para que o espetáculo comece. Uma música em play back anuncia a surpresa: Jurandy vai tocar novamente o bolero, ao seu modo, é claro. Tal como um sacerdote de um culto profano, ele anuncia que vem fazer a interpretação de número não sei quanto. Alguns desavisados gringos procuram de onde vem aquele som de sax e sempre um prestativo e submisso nativo, em tom de falso espanto avisa: “olha lá ele na proa daquele barquinho”. Onde? Rapidamente todos sacam suas câmeras digitais como japoneses curiosos, dividindo o foco e o flash entre o instrumentista e a bola colorida que se afoga entre a vegetação e a água. Tal como se fizesse parte da estrutura do barco, vestido de branco e laranja, ele toca o bolero de Ravel. Na palafita vizinha um outro ser realiza a mesma encenação também numa canoa. É verdade sim que eles brigaram pra ver quem teve a idéia de entreter gente que come e bebe contemplando a grande bola. Mas o músico Jurandy foi esperto: patenteou tudo. O outro segue fazendo tudo igual como um esquelético clone de uma cena desgastada. Tudo é sincronizado.
Uma socialite vestida com uma roupa com estampa de pele de tigre ajusta seu óculos de sol Gabana para ver melhor a novidade. Por fim, como um pirata, ele sobe em nosso navio-palafita e estamos todos congelados. O sol já se foi e é chegada a hora do esperado silêncio. No mini-palco, na proa do bar, educadamente ele agradece a atenção de todos pelo momento de grande espiritualidade. A madame talvez esteja sensibilizada mas evita derramar lágrimas sobre a maquiagem, não pega bem. O silêncio dura apenas uns minutos e Jurandy ainda mais sacro vai tocando uma Ave Maria. A missa termina. Ao invés de luz estamos órfãos no escuro. O silêncio nos acalma. Por pouco tempo novamente. Uma banda de forró plastificado no bar ao lado não deixa o clima esfriar numa deprê. A maioria dos gringos vai embora, inclusive um senhor americano com suas duas jovens acompanhantes remuneradas em dólar. A crocodilagem sorri de presas abertas. Os guardadores de carro se rebolam para evitar que todos se evadam sem molhar a caixinha. A vida segue e não se olha para trás. O fluxo motorizado agora invade a rodovia.

Carlos Azevedo é jornalista e professor universitário

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