Por: Belarmino Mariano Neto
Estamos no Nordeste brasileiro. Nordeste do Brasil não é apenas um referencial geográfico definido pelas coordenadas geográficas em suas latitudes e longitudes, definidas pela rosa dos ventos em seus pontos cardeais, colaterais e subcolaterais. Esse desenho por nós conhecido desde os primórdios do ensino.
O Nordeste brasileiro é uma construção cultural marcada por rotas e novelos de existências humanas indígenas, negras e brancas em um mosaico multefacetário em suas imagens caleidoscópicas.
As palavras não conseguem dizer o que o Nordeste brasileiro representa em seus ruídos, imagens e sons. Os ouvidos enquanto sentidos auditivos projetam imagens mentais de coisas que só sendo nordestino e tendo vivido em determinados lugares, como os sertões, comunidades quilombolas, caboclas ou coisa parecida. Os sertanejos e suas marcas cravejadas de espinhos, pedras e coriscos em carrascais que só a paisagem sertaneja guarda em suas estações de secas, primaveras, verões e invernos. Tons de couro de vacas e cabras em utensílios muitos. Balaios, peneiras, chocalhos e potes de botar água de beber.
Humanos de serras e vales secos. Humanos de espinhos e rostos queimados pelo fogo solar em seus cotidianos de lida pelas catingueiras. As chuvas em temporais e seus rios cheios de vazios de barros e barrancos. Humanos presos pela força das águas e capazes de conviver em pleno vale encantado dos lajedos mágicos. Na voz das resadeiras e seus oratórios da casa ou santos pendurados nas taipas das paredes da sala.
O Cordel do Fogo Encantado é um grupo musical das brenhas do Sertão pernambucano, das bandas de Arco Verde e redondezas. Esse grupo consegue assimilar a essência do ser nordestino, simbolismo, existência e fascinação criadas por sons, cores, sabores e odores ditos por uma língua em farpas do pensar cantado. Uma filosofia viva, vivida em cotidianos extremamente ricos de diversidades e contradições.
O Cordel do Fogo Encantado canta lamentos nordestinos, alegrias e tristezas que se manifestam em festas e sotaques de aboios e canções de lavadeiras. Eles cantam uma geografia cultural profundamente arraigada às tradições da fala nordestina, da fala e da escrita em diálogos feitos com cordas de palavras penduradas pelas línguas em cordéis de dizeres que só o nordestino consegue dizer. A palavra ganha força, a voz nordestina em sua agudeza afro-descendente em rituais de tambores e chamamentos espirituais. As coisas dos índios em ritmos caboclos. A fala seca musicada em ritmos semi-áridos.
O canto popular, as cantigas do lugar coladas em seus diferentes ritmos e significados. Este ensaio é a perspectiva de uma geografia cultural. A Geografia de um lugar é sua cultura manifestada em atores sociais que percebem a riqueza dos sons, dos ritmos e dos padrões de linguagem. Parece até que estamos falando do local, no sentido da lugaridade ou do localismo em fragmentos desligados da globalidade. Nada disso. O Cordel do Fogo encantado trabalha com os sons do universo, os ruídos e métricas matemáticas da música em suas profundezas (Letra de Música):
A Árvore Dos Encantados
Cordel Do Fogo Encantado (Composição: Lirinha)
Acorda levanta resolve
Há uma guerra no nosso caminho
Nos confins do infinito
Nas veredas estreitas do universo
Vejo
As cinzas do tempo
O renascimento
As danças do fogo
Purificação transporte
Escuto
O trovão que escapou
As ladainhas das mulheres secas
Herdeiros do fim do mundo
Isso não é real
Não
Isso não é real
A brotação das coisas
Herdeiros da Tempestade
Girando em torno do sol
Do sol
Girando em torno do sol
Vejo
Aquele cego sorrindo
No nevoeiro da feira
Aquele cego sorrindo
Beijo
A fumaça que sobe
O peito da santa
O cheiro da flor
Árvore dos Encantados
Vim aqui outra vez pra tua sombra
Árvore dos Encantados
Tenho medo mais estou aqui
Tenho medo mais estou aqui
Aqui Mãe
Aqui meu Pai
Em cima do medo coragem . Recado da Ororubá
Sentimos as profundezas da letra e sua interpretação pelo grupo simplesmente desafia as leis do firmamento. A Geografia cultural então observa que o autor Lirinha constrói uma paisagem de sons, melodias e imagens caleidoscópicas de um ritual místico, mas ao mesmo tempo tenebroso; cheio de enigmas e escuridões. A história contada pela musica a árvore do encantado nos permite ir até gênese ou o livro de São Cipriano. Aos confins do Brasil e as entranhas da África. O arrasta de espíritos negros em suas correntes de fumaças.
"Entre o cristal e a fumaça" (ATLAN, 1992) é possível ver segredos revelados pelo medo estampado no “peito da santa”. A arvore do encantado é a ciência humana em suas profundezas. A busca da verdade. A grande questão do real: “Isso não é real”. O que é real? Qual a verdade? Como diz Fernandes (2003), a fantástica possibilidade da cegueira humana, da ciência brincando de cobra cega. Mas quando levamos para a essência das coisas, claro que estamos diante de clarividentes, exercitando uma paisagem geográfica.
Referências:
ATLAN, Henri. Entre o Cristal e Fumaça. Rio de Janeiro. Jorge Zhar editor,1992.
FERNANDES, Manoel. Aulas de Geografia. Campina Grande: Bagagem, 2003.
http://www.cordeldofogoencantado.com.br/
OLHARES GEOGRÁFICOS - Grupo de Pesquisa em Geografia Cultural e da Percepção - UEPB/CH/PRPGP/CNPq.
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