Geografia Cultural e Gênero: Mulher, Natureza e
Trabalho.
Belarmino Mariano Neto
Fotografia de Érica Gomes da Costa Mariano, 8 de março de 2010
Sabemos
que o dia 8 de março marca a luta e luto, pela violência contra as mulheres em
todo o mundo. Daí começar esse artigo com o trecho de um poema escrito no
Manifesto caleidoscópio da paixão poética pelo nada (http://essencialimo.blogs.sapo.pt)
por considerar o campo de estudo da geografia cultural enquanto um universo
multiplicador de possibilidades. Assim segue a idéia de mulher, sociedade e
natureza enquanto marcas das ações humanas no espaço:
Quando
ocupei o útero de Gaya ainda não era
homem, mas apenas sonho. Gaya gerou
do sêmen solar a luz da vida que germina em suas entranhas fecundas. Primeiro
um pó de luz se espalhando pelos recantos e imaginários olhos de mulher, que
chora, grita, e sorrindo cria nas profundezas do ser os cristais para o novo e
despreendido movimento do nascer galáctico: o filho de uma nova idade, fluído
de uma aromática essência de mulher que chorando se corta por dentro e sangra
um avermelhado e violento momento matriarcal (MARIANO NETO, 1996:07).
Esse
trabalho é apenas um ensaio que se coloca enquanto brecha e linha temática para
que estudos mais aprofundados aconteçam, pois a geografia assim como as demais
ciências humanas e sociais precisa refletir sobre o papel da mulher enquanto existência
de resignificado papel e desenho da cartografia social.
Ninguém
nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico
define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da
civilização que elabora este produto intermediário entre o macho e o castrado
que qualificam de feminino. (Simone de Beauvoir, ‘O segundo sexo’, 1949).
Quando
propomo-nos relacionar a mulher com natureza, não é com a intenção de
encontrarmos a “natureza feminina”, idéia de que a mulher possa estar mais
próxima da natureza como se expressam em seu próprio corpo, “os ciclos
naturais”, como se estes elementos fossem responsáveis pelo destino das
mulheres.
Muito
mais que isso, a mulher é essa natureza humana em seu desenho civilizatório, o
princípio básico do trabalho cotidiano, as imposições sócio-econômicas, éticas
ou morais e a quebra dessas amarras por um movimento historicamente sedimentado
na luta pelo destino em suas mãos e as feituras cotidianas de espaços e
paisagens que marcam os significados do trabalho da mulher.
Tomando como base a sociedade ocidental, temos que os
distanciamentos humanos da natureza a partir do trabalho criaram uma espécie de
dicotomia, onde as diferentes sociedades que tomaram como base a acumulação ou
pilhagem dos elementos naturais, afastarem-se da possibilidade de harmonia
entre seres humanos e meio ambiente natural.
Mesmo sabendo que toda e qualquer coisa existente em
nosso seio social, de forma material ou imaterial é em si natureza trabalhada.
Assim é a construção do meio ambiente humano, enquanto natureza social, ou
espaço artificial, e que muito nos interessa, pois nele, toda a cultura
produzida com os elementos vivos que foram historicamente sendo manipulados
pelos braços femininos (agricultura, domesticação, ervas, sementes, jardins,
alquimia dos alimentos), poder que na Antigüidade sagraram a mulher como
divindade, ou que no medievo concederam como bruxaria. Trabalho social,
sexualmente bem definido que lhes dar o poder de manipular com a natureza,
experimentos empíricos que tornaram as mulheres equilibradas de razão e emoção,
mas reprimidas ou controladas pela força, encobrindo por milênios a fio, quem é
que realmente mantém uma sociedade em pé e constrói uma civilização de “homens
fortes”.
A mulher na construção desse cotidiano social vai
contribuindo sobremaneira para na interface sociedade/natureza, pintar um
quadro que muito se expressa nas grandes obras das civilizações. Com seu
sorriso misterioso a mulher vai se construindo enquanto bruxa, fada ou feiticeira,
enquanto filha do estupro ou aborto do medo, violação patriarcal do divino.
O homem aí
diz que as mulheres precisam ser ajudadas para subir nas carruagens e
carregadas para atravessar regos, a para ter o melhor lugar em todos os cantos.
Ninguém nunca me ajudou para subir em carruagens ou passar por cima de
lamaçais, para me ceder o melhor lugar - e não sou eu uma mulher? Olhai meu
braço! Eu lavrei e plantei e armazenei em celeiros, e nenhum homem podia me
ultrapassar - e não sou eu uma mulher? Pude trabalhar e comer tanto quanto um
homem podia - quando tive a oportunidade - e agüentar chicote também! E não sou
eu uma mulher? Tive treze filhos, e vi a maioria vendida como escravos, e
quando chorei com minha dor de mãe, ninguém me ouviu, a não ser Jesus - e não
sou em uma mulher? (TRUTH, Sojourner, ex-escrava, líder abolicionista, USA,
séc. XIX).
Nos
dias atuais, a técnica/ciência tornou a terra em uma pequena aldeia global,
grandes megalópoles abundam em vários cantos do planeta. É uma fase de forte
artificialização do espaço, onde o distanciamento das coisas do meio ambiente
natural e a simulação de novos arranjos criam um humano frio, de concreto,
vidro e metal. Mas na sacada de um edifício com cinqüenta andares, no último
dos andares, as vezes é possível ver com a ajuda de uma luneta um pequeno jarro
de flores. Orquídeas, margaridas, dálias ou rosas. Terá sido o trabalho e
sensibilidade de um homem?
Não arriscaríamos
responder esta simulação, para não torná-mos absolutistas ao extremo. Mas gostar-mos-ia
de dizer que o que temos de natureza humana, e natural dentro da urbes, tem
refletido em grande escala o trabalho da mulher. Basta olharmos para o verde
nossos jardins e quintais, tão trabalhados pelos braços da mulher, hábito
campestre que torna a cidade com ar de natureza em cada canto.
Este
tipo de trabalho reaproxima o humano da natureza, ou seja, na perda do instinto
animal, o nascimento do sexto sentido, como sendo um emocional superior,
alimentado pela imaginação e que se manifestam muito mais forte na mulher.
Quando
estamos em uma sala de aula com jovens estudantes, e ao nos aproximarmos da
porta, interrogando-os sobre o que é isto? Os mesmos poderão responder, sem
sombra de dúvidas que é uma porta. Mas instigados a ver mais coisas, via
imaginação culturalmente acumulada, dirão que ali existe madeira, dobradiças,
trincos, pregos. Ou seja, o material aparente.
Mas
se estimula-los ainda mais nessa imaginação podem ver que a porta representa
prisão, liberdade ou segurança; que a porta feita de madeira ou outra matéria
morte é antes de qualquer coisa um grande acumulo de trabalho individual e
coletivo, primário, secundário e terciário. Ela é culturalmente, algo mais que
uma palavra singular.
Não é
a porta que esconde a sua essência em significados, mas todo um conjunto de
valores sociais que ideologicamente não querem que o trabalho coletivo seja
desvendado, daí a busca de simplificação das coisas, e no mais, a
desvalorização do que venha a ser trabalho para ou de mulheres, crianças e
homens.
Aí
reside um dos grandes problemas de homens que acham ser a mulher uma singular
palavra, como portas que podem ser fechadas ou abertas ao ritmo dos séculos de
força e músculos tencionados.
Concluímos
esse pequeno ensaio dizendo que sem a leveza livre e suave dos cabelos ao vento
e o caminhar descalço, sem as asas da paixão ou o voar de pássaros o nosso
universo não teria um toque mágico de mulher, com tintas e cores tecidas no
multicolorido amar incolor, que transpondo montanhas, sussurra em nossos
ouvidos castelos encantados respondem pelas grandes transformações da sociedade
que busca se humanizar em seu processo civilizatório.
Belarmino Mariano Neto, Guarabira, 8 de março de 2013.
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