Foto feita Severino Lira o "Biu", na década de 1950. |
Por: Alexandre Moca - Sobre a Barragem Tauá em Cuitegi/PB
No primeiro momento era apenas o riacho serpenteando pelo vale a fora, vigiado do alto pela imponente serra da Mucunã. Auta e Mathias nascidos e criados nas imediações fincaram suas raízes nas margens do riacho Tauá, mais precisamente no sítio Gameleira. Lá nasceram seus oito filhos. A cidade precisou da água perene do Tauá. Augusto de Almeida, farmacêutico de formação, sanitarista por essência e prefeito de Guarabira eleito nos primeiros anos da década de 50, proporcionou com a sua luta a chegada da água limpa e pura do novo represamento aos canos da cidade em expansão, dando descanso às fontes perenes de Piloezinhos, que ainda era distrito. O Soturno, com a sua água de tom azulado, matou durante anos a sede da cidade sendo transportada em barris, no lombo de burros. A barragem cheia, por sua vez, deixou submersas parte das marcas da infância dos filhos de Mathias e Auta. A paisagem exuberante, adornada pelo represamento, serviu de cenário para a infância dos primeiros netos. Trilhas dentro da mata, farinhadas e pescarias, faziam parte da rotina estressante desses dias inesquecíveis. Baladeiras, embornais, alçapões e anzóis eram itens obrigatórios da nossa indumentária. A canoa e generoso dorso dos cavalos, selados ou em pelo, ampliavam a nossa sensação de liberdade. As badaladas da sineta feita com trilho de trem e que rompiam o silêncio reverberando entre as serras, eram codificadas pela minha avó e diziam se mais uma refeição estava pronta ou se havia chegado visita. Nem bem o dia começava, já tínhamos um leque de afazeres. Pelas cinco da manhã as janelas da sala eram abertas e o sol invadia meu lugar de dormir, uma rede armada perto da escrivaninha onde meu avô ouvia rádio (a bateria) e ao final dos dias anotava o ponto dos trabalhadores. Tomávamos café preto feito por ele em fogo de lenha, aceso com sabugos de milho imersos em querosene. O acompanhamento era bolacha roseta ou biscoito de peixinho da padaria de seu Leó, dois dos poucos itens que não eram produzidos pelas mãos ou sob a orientação da minha avó. Estávamos então prontos para as primeiras tarefas do dia. Lá íamos a bordo da canoa construída no próprio sítio, com madeira da mata. Primeiro as redes de pesca, depois os anzóis instalados no topo dos troncos dos coqueiros que resistiram à inundação. Traíras, tilápias e jundiás eram retirados das redes e dos anzóis pelo meu avô, sem danificar as malhadeiras ou maltratar o pescado que ia direto para cozinha enriquecer a nossa dieta. O restante do dia se improvisava até que a noite nos colhesse absolutamente exaustos e o sono nos pegasse ainda de pé, escorado em alguma parede, cochilando, sem querer nos render ao apelo do corpo pelo descanso. Depois de horas entocado debaixo de ramas de melão de São Caetano, capturei um galo de campina em um alçapão emprestado por um amigo. Meu avô pediu para ver e como por descuido, concedeu a liberdade ao galo. Este voou e pousou em cima da cumeeira da casa de farinha, ficando lá um bom tempo, como se fizesse pouco de mim. Meus tios e tias, como o galo de campina, foram voando, ganhando a cidade à busca dos estudos, desta feita não por descuido, mas por cuidado do meu avo. Aliás, educação foi ponto de honra para ele, agricultor que sabia como ninguém do trabalho que representava tirar da terra a subsistência. Nesse movimento a casa do sítio foi se esvaziando. Passados mais alguns anos a cidade acenou insistente para Auta e Mathias e eles tiveram, por razões da idade e da saúde, que deixar para trás toda uma vida, mas isso não aconteceu sem certa resistência. Com todas as luzes e agrados, a cidade nunca os fez esquecer o ponto de partida e do trabalho que tiveram como agricultores para criar e educar a numerosa família. Também não esqueceram a fartura das boas safras, as delícias produzidas em forno e fogão de lenha, as frutas amadurecidas no pé. Com o passar dos anos água minguou nos canos da cidade inchada e velho Tauá teve mais uma vez que dar resposta aos apelos da Guarabira sedenta. O maciço terroso da barragem teve seu nível elevado e inundação deixou debaixo d’água da casa grande, a casa de farinha, o quarto da fibra e a cocheira, apagando desta feita as marcas da infância dos netos. Ainda assim a paisagem continuou de encher os olhos. O novo espelho d’água formado como uma gigantesca cobra entre as serras tem sido motivo permanente do meu olhar fotográfico. Penso que indo e vindo mil vezes e de posse de uma câmera, ainda assim terei deixando para trás as melhores imagens. A pé, de barco, a cavalo ou até pousando suavemente de ultraleve sobre as águas plácidas do velho Tauá, não consigo capturar a beleza das imagens que só me vêm quando fecho os olhos e faço emergir por completo o sítio Gameleira da época do meu avo. Aí sim, não só vejo como ouço o movimento sinfônico do motor de desfibrar agave em dueto com o rodête da casa de farinha. O barulhinho suave dos córregos muito tempo depois da chuva e o chacoalhar das redes carregadas de peixes depois das enxurradas. Da lama dos atoleiros e do riacho de João Babau, que quando enchia, não dava passagem aos vindos de Alagoinha. Do ronco dos cardãs dos Jipes de Dariu, de Seu Alcides e de João Matuto moendo lama para nos deixar o mais próximo possível da casa do sítio. São imagens e sons capturados pelas mais sofisticadas lentes e gravadores já inventados, as nossas retinas e ouvidos. As fotos a seguir são registros das minhas expedições em busca da Gameleira perdida no tempo, continente submerso, guardado sob a imensa caixa hídrica do Tauá. Alexandre Moca. *A MONTANTE DAS LEMBRANÇAS foi publicado com originalmente, para consumo interno, na abertura de um ensaio fotográfico de cunho familiar, que foi distribuído entre algumas das minhas tias e primos, apreciadores das boas lembranças deixadas pela Gameleira de Mathias e Auta. Divido-o agora com os amigos do face.
* Texto original e imagens da fonte: http://www.facebook.com/photo.php?fbid=4559641928052&set=a.4559515284886.1073741833.1801665484&type=1&theater
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