terça-feira, 28 de abril de 2015

Dos mapas mentais da solidão às cartografias do envelhecimento

Belarmino Mariano Neto

No frontal dos teus olhos uma penumbra, um rasgo de luz entre os cacos de vidro cor de bronze se espalham ao final da tarde e o por do sol escorre pelos manguezais do rio Sanhauá, até atingirem o horizonte dos tabuleiros litorâneos na direção ocidental de mais um dia oco que se alonga para os sertões, onde o sol ainda castiga em suas faíscas de luzeiro.
Antiquários envelhecidos arquitetam o olho do tempo, revestindo suas dependências de enigmas como se as soleiras do portal fossem amalgamas para uma ordem ou missão dos templários. Os antiquários são territórios do vivido, das memórias, das lembranças, dos esquecimentos e da senhora que pede passagem para o grande mestre que a todos consome.

Na mente envelhecida, mapas mentais em garatujas desalinham rotas tortuosas de lembranças incompletas, sem legendas claras, nem pontos de partidas. Ilegíveis aos viajantes neófitos. São memórias de fogo, memórias de águas, memórias de magoas e feridas abertas por pontas de arame em farpas. Marca já saradas, que cicatrizaram aquela pele em rugas.
Posso ver no oculto emaranhado da mente, aquela mulher sentada na soleira da porta de entrada do velho casarão desabitado. Uma construção do começo do século XIX, com varandas semiabertas, sustentadas por dez grossas colunas e oito grandes janelas de madeira maciça pintadas com um verde envelhecido e que emolduram a parede da frente do casarão.

Os seus envelhecidos pés são ao mesmo tempo suaves e sulcados de rugas. Descalços tocam o piso do terraço, um piso de um mosaico quadriculado em tons branco e vermelho muito desgastado. A porta também de madeira maciça se oculta na lateral do abandono e entreaberta representa um umbral com tons esverdeados e camadas descascadas de um azul interno, indicando sobreposição de uma pintura há muito tempo encoberta pelo verde sem vigor, muito mais fuligem, mofo e poeira, que a própria tinta.
Ela é a guardiã do templo e senhora do tempo. Uma mulher branca e manchada de sardas guarda em si o véu da virgindade sem macula. Foram exatos noventa e sete anos vividos, com os quais demarca o ritual de passagem pelo portal para adentrar o casarão dos seus próprios sonhos. Guarda que segredos? Esconde que mistérios? O que ainda Aguarda?

  
Pela nudez transparente e fino tecido de suas vestes, notei em seu corpo, uma gigantesca e enrugada tatuagem que representa a cartografia do desejo e as rotas da solidão. As linhas, as curvas e o sinuoso entrecruzado das mesmas, espalham-se pelos seus ombros, abdômen e costa, representando sentidos de subterrâneos sem começo, sem meio, nem fim.
Ela se encontra perdida em entre pensamentos e se sente jovem, se sente mulher em flor de idade, querendo em sede e brasa se derreter por entre os dias, por entre as estreitas e fascinantes sendas da navalha que corta a calma a alma e alegria. Se percebe em meio a cortinas do passado, por entre vidraças do desconhecido, sem saber ao certo do que pensa, do que sente, do que vive em seu distante mundo de tenra idade.
 

Ela se sente um pássaro em plumas humanas em sua nudez vestida de relvas. As linhas da tatuagem cartografada em seu corpo escorre por todos os lados das suas coxas, pernas, ombros e braços. Em tons multicoloridos, como se fossem imagens pintadas em rena indiana, marcam lembranças vivas das primaveras. A finura das linhas tatuadas na sua pele, disputa espaço com o fino tecido do tempo, indicando sentidos conexos, como se fossem garatujas de um passado recente. Escritos legíveis que aguçam o sentido da visão em um emaranhado de flores que rodopiam os picos dos seios ostentosos em outros cachos que escorrem pelos cabelos e escondem a crina dos seus cabelos até os ombros. 
Como se retornasse ao embaralhado dos seus pensamentos, a sua mente cambaleia para o passado distante e olhos perdidos ao longe indicam sentidos desconexos, como se fossem garatujas de um passado longiniano. Escritos inelegíveis, configurações divergentes e sem pontos de partidas, confundem o sentido da visão. Dos bicos dos seus seios, escorrem ideias de montanhas sulcadas e desgastadas pela erosão dos olhares de outrora e na couraça da sua pele, desnudam sinuosidades enrugadas que lembram rios intermitentes com intensa lixiviação.
A mulher em sardas esconde em seu dorso símbolos e enigmas de um mapa desenhando e legendado por códigos desconhecidos. Talvez representando uma língua morta ou traçados feitos para confundir os aventureiros, encantando-os para sempre em um cego tatear de estrelas que já não existem mais. Observando o mapa de sua pele, percebi a existência de trilhas apontando para recônditos lugares e vazios abismáticos.
  Fonte: www.artenocorpo.com
Em um suave e lento movimentar das suas mãos, observei o traçado de uma vida de longa solidão em seu destino. Uma vida de nevasca eterna, de fina e invisível areia escorrendo por entre os seus dedos delicados. Enroscados pelos seus antebraços, vi a figura de dois dragões sobrevoando sua alma, sua calma e sua alegria. Nos seus braços, duas serpentes alimentam-se da espera e do imprevisível. E, entre as cobras e os dragões, uma sequência de desenhos tribais, como se representassem uma dança de imagens solares e lunares rodopiando pelo vazio enigmático do seu olhar.
Mas de repente é como se todas estas imagens sumissem de sua pele e do nada os mapas e tatuagens nunca estivessem marcados em seu corpo e tempos. A sua pele nua se revestia da sol, se revestia de velhice e juventude, como em um encontro astral inesplicável.
     
Em seu corpo, uma cartografia de desenhos, arranjos e relações encobertos por pesadas camadas do tempo. Um tempo esfíngico mistura carne e pedra, dando forma à envelhecida mulher sentada ao lado de si mesma. Naquele canto do jardim da velha casa. Ali, ela repousa o corpo na claridade solar e percebi que o casarão desaparecera dos seus pensamentos.
Mas o céu com sua abertura de luz e atmosfera nua lhe reaproxima dos cantos do terraço do casarão inclinando suas sombras sobre as paredes envelhecidas do espaço oco. Num jogo fotográfico de luz e sombra, nuvens cruzam o ilusório céu da tarde e, seguindo a rotação da Terra espalha sombras suaves pelo chão desgastado do terraço, marcado com invisíveis pisadas não se sabe de quem.
Por todo o seu corpo feminino, estão esculpidos os sulcos do tempo, manchas solares e cicatrizes de amores desfeitos, escombros de paredes descascadas em suas camadas de tintas. O tempo escorre profundas rugas pela sequidão exposta do seu corpo e nas entranhas de sua pele uma marca cicatrizada indica a cratera de uma grande queimadura que brota na altura do seu coração.

Fonte da imagem: http://nadja-cacarecos.blogspot.com.br/2013/08/casarao-do-parque-jambeiro.html

Como hera e fícus verdejante ela agarra-se as pedras e penetra pelos francos das paredes, assim, a mulher se torna o casarão que é habitado por ela própria. Sua carne se mistura com a pedra e o barro da antiga construção em desmoronamento, em uma cartografia de sentimentos e vazios envelhecidos. Seus olhos esverdeados e pesados marejam um olhar para a porta aberta lhe permite pedaços de sentidos de um olhar distante e vazio de presenças.
Sua face encontra-se tatuada em musgos e líquens e suas garras se ficam nas paredes entecendo novas colunas de vida em galhos que até o tempo se desespera diante do desafiante continuar contando estes mapas mentais de um desconhecido mundo em seiva de mulher. Com os últimos raios do sol, desce o anoitecer e ela levanta-se da velha soleira, entra no casarão destelhado e diante do escuro, leva consigo o que restava do agora, deixando a porta aberta para que o amanhã aconteça.

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