Folha São
Paulo, domingo, 26 de fevereiro de 2012
Crise
beneficia os mais ricos, diz geógrafo Para David Harvey, a lógica das políticas
de austeridade é perpetuar o desastre econômico e concentrar mais o
poder Professor vê ascensão do nacionalismo e diz esperar movimentos mais
sólidos contra a desigualdade no mundo
ELEONORA DE
LUCENA DE SÃO PAULO As políticas de austeridade perpetuam o desastre econômico.
E há uma lógica por trás disso: os ricos e poderosos se beneficiam da crise,
que provoca mais concentração de renda e de poder político. A análise é do
geógrafo marxista David Harvey, 76. Professor de antropologia da
Universidade da Cidade de Nova York, ele fala da ascensão do pensamento de
direita e espera a emergência mais sólida de movimentos contra a
desigualdade.
"Até
pessoas muito ricas, como Warren Buffett, reconhecem que a desigualdade foi
longe demais", afirma. Harvey estará no Brasil nesta semana para
debates em São Paulo e no Rio e para o lançamento de seu livro "O Enigma
do Capital".
Folha
- Como analisa a crise?
David Harvey
- As crises não são acidentes. São fundamentais para o funcionamento do
capitalismo. O capital não resolve as crises, mas as move de um lugar para o
outro.
Que mudanças
ocorrerão?
A China está
além do limite e terá problemas difíceis. Há superprodução e superinvestimento
e haverá fortes pressões inflacionárias.
Como avalia
o caso da Grécia?
A Grécia
terá que declarar moratória e deixar o euro. No curto prazo, pode ser
traumático, mas a Argentina decretou moratória e voltou mais forte. É preciso
sair do euro para fazer o que a Argentina fez: desvalorizar a moeda.
Qual o
impacto dessa crise na política?
A visão da
direita é muito nacionalista. Há a emergência do nacionalismo não só na Grécia,
mas em outras partes, o que pode se mover para ditaduras. Há uma transferência
de riqueza do povo para os bancos, e o povo protesta em muitos países.
A crise
ampliará a diferença entre ricos e pobres?
Nos EUA, os
dados mostram que a desigualdade de renda cresceu de forma notável com a crise.
Cresce também a desigualdade de poder político. Há muitos movimentos no mundo
contra a desigualdade.
Mas a
direita cresce.
Sim. Não é
só a direita que está crescendo, mas um movimento nacionalista, que também
existe na esquerda. Uma das respostas políticas é tentar cortar as ligações com
a globalização e buscar um programa de autonomia local e de autodeterminação
local, demandas que estão na esquerda e na direita.
Isso pode
levar a guerras?
Gerará mais
tensões. Podemos ver conflitos militares regionais, não o tipo de guerra dos
anos 40. Por exemplo, o Brasil tem uma versão disso nos conflitos das favelas
do Rio de Janeiro.
E o que deve
ser feito?
É preciso
que haja um movimento político que enfrente a questão sobre qual deve ser o
futuro do capital. Não vejo nenhum movimento fazendo isso de forma coerente. É
o que tento estimular.
E o que o
sr. defende?
Acredito que
os trabalhadores precisam ter o controle do seu processo produtivo. Eles
deveriam se auto-organizar em fábricas, locais de trabalho, nas cidades. A
ideia é que associações de trabalhadores possam regular sua produção e suas
decisões. É preciso também ter um mecanismo de coordenação, o que é diferente
dos mercados.
Isso não é
tarefa do Estado?
Historicamente
o Estado tem que fazer isso, mas muitas pessoas não confiam no Estado, pois ele
é muitas vezes corrupto e foi desenhado essencialmente para benefício do
capital, não em benefício do povo. É preciso pensar numa forma alternativa de
coordenação e organização.
Em "O
Enigma do Capital" (2010), o sr. propõe criar um "partido da
indignação" contra um "partido de Wall Street". Como vai essa
ideia?
Há muitas
diferenças entre os movimentos pelo mundo. Nos EUA, o movimento
"Occupy" é pequeno e fragmentado e não está maduro em termos de força
política. Isso poderá ser mudado.
Em "O
Novo Imperialismo" (2003), o sr. fala da questão da hegemonia dos EUA. Como
vê isso hoje?
Os EUA
continuarão a ser um poder significativo, mas não da forma que foram nos anos
70 e 80. Haverá poderes hegemônicos regionais. O Brasil será um deles. China,
Índia e Alemanha também.
O consumismo
é ainda a chave para a paz social nos EUA, como o sr. diz no mesmo livro?
Austeridade
reduz o padrão de vida, o consumo, a produção e o emprego. Torna as coisas
ainda piores. Mas EUA e Europa estão engajados na política da austeridade, e
isso está perpetuando a crise. Mas há uma lógica por trás na perpetuação da
crise: as pessoas poderosas e influentes se beneficiam dela. Os ricos estão
indo muito bem. Portanto, perpetuar a crise é uma forma de perpetuar seu
crescente poder e sua crescente riqueza.
Em "The
Limits to Capital" (1982), o sr. descreve a dinâmica do capital. O poder
das finanças cresce com a crise?
Sim. O
capital financeiro é hoje importante como nunca foi. Mais ativos serão
fornecidos ao setor bancário. Quando é preciso mais dinheiro, o Fed [banco
central dos EUA] aparece com um trilhão de dólares e joga no mercado.
Portanto,
não há limite à capacidade de criar o poder do dinheiro. Há limites em muitas
outras áreas: recursos naturais, produção de commodities etc. Não há limite ao
poder do capital financeiro.
O sr. está
otimista?
Sou otimista
no sentido de que acredito que as pessoas vão reconhecer que há limites sérios
no capitalismo e que é preciso considerar modos alternativos. De outro lado, a
volatilidade é tanta que as pessoas podem tomar direções malucas, o que pode
levar a autoritarismos e a sérias rupturas na economia.
As ideias
que o sr. defende não podem ser consideradas utópicas?
Pode ser.
Mas mesmo o pensamento dominante está começando a reconhecer que o nível de
desigualdade que existe hoje não pode ser sustentado. Até pessoas muito ricas,
como Warren Buffett, reconhecem que a desigualdade foi longe demais.
Leia a íntegra da entrevista
(folha.com/no1053440)
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