segunda-feira, 5 de março de 2012

Geógrafo David Harvey analisa a crise mundial

Folha São Paulo, domingo, 26 de fevereiro de 2012 

Crise beneficia os mais ricos, diz geógrafo Para David Harvey, a lógica das políticas de austeridade é perpetuar o desastre econômico e concentrar mais o poder Professor vê ascensão do nacionalismo e diz esperar movimentos mais sólidos contra a desigualdade no mundo 



ELEONORA DE LUCENA DE SÃO PAULO As políticas de austeridade perpetuam o desastre econômico. E há uma lógica por trás disso: os ricos e poderosos se beneficiam da crise, que provoca mais concentração de renda e de poder político. A análise é do geógrafo marxista David Harvey, 76. Professor de antropologia da Universidade da Cidade de Nova York, ele fala da ascensão do pensamento de direita e espera a emergência mais sólida de movimentos contra a desigualdade. 

"Até pessoas muito ricas, como Warren Buffett, reconhecem que a desigualdade foi longe demais", afirma. Harvey estará no Brasil nesta semana para debates em São Paulo e no Rio e para o lançamento de seu livro "O Enigma do Capital".

 Folha - Como analisa a crise? 

David Harvey - As crises não são acidentes. São fundamentais para o funcionamento do capitalismo. O capital não resolve as crises, mas as move de um lugar para o outro.

Que mudanças ocorrerão? 

A China está além do limite e terá problemas difíceis. Há superprodução e superinvestimento e haverá fortes pressões inflacionárias. 

Como avalia o caso da Grécia? 

A Grécia terá que declarar moratória e deixar o euro. No curto prazo, pode ser traumático, mas a Argentina decretou moratória e voltou mais forte. É preciso sair do euro para fazer o que a Argentina fez: desvalorizar a moeda. 

Qual o impacto dessa crise na política? 

A visão da direita é muito nacionalista. Há a emergência do nacionalismo não só na Grécia, mas em outras partes, o que pode se mover para ditaduras. Há uma transferência de riqueza do povo para os bancos, e o povo protesta em muitos países. 

A crise ampliará a diferença entre ricos e pobres? 

Nos EUA, os dados mostram que a desigualdade de renda cresceu de forma notável com a crise. Cresce também a desigualdade de poder político. Há muitos movimentos no mundo contra a desigualdade. 

Mas a direita cresce. 

Sim. Não é só a direita que está crescendo, mas um movimento nacionalista, que também existe na esquerda. Uma das respostas políticas é tentar cortar as ligações com a globalização e buscar um programa de autonomia local e de autodeterminação local, demandas que estão na esquerda e na direita. 

Isso pode levar a guerras? 

Gerará mais tensões. Podemos ver conflitos militares regionais, não o tipo de guerra dos anos 40. Por exemplo, o Brasil tem uma versão disso nos conflitos das favelas do Rio de Janeiro. 

E o que deve ser feito? 

É preciso que haja um movimento político que enfrente a questão sobre qual deve ser o futuro do capital. Não vejo nenhum movimento fazendo isso de forma coerente. É o que tento estimular. 

E o que o sr. defende? 

Acredito que os trabalhadores precisam ter o controle do seu processo produtivo. Eles deveriam se auto-organizar em fábricas, locais de trabalho, nas cidades. A ideia é que associações de trabalhadores possam regular sua produção e suas decisões. É preciso também ter um mecanismo de coordenação, o que é diferente dos mercados. 

Isso não é tarefa do Estado? 

Historicamente o Estado tem que fazer isso, mas muitas pessoas não confiam no Estado, pois ele é muitas vezes corrupto e foi desenhado essencialmente para benefício do capital, não em benefício do povo. É preciso pensar numa forma alternativa de coordenação e organização. 

Em "O Enigma do Capital" (2010), o sr. propõe criar um "partido da indignação" contra um "partido de Wall Street". Como vai essa ideia? 

Há muitas diferenças entre os movimentos pelo mundo. Nos EUA, o movimento "Occupy" é pequeno e fragmentado e não está maduro em termos de força política. Isso poderá ser mudado. 

Em "O Novo Imperialismo" (2003), o sr. fala da questão da hegemonia dos EUA. Como vê isso hoje? 

Os EUA continuarão a ser um poder significativo, mas não da forma que foram nos anos 70 e 80. Haverá poderes hegemônicos regionais. O Brasil será um deles. China, Índia e Alemanha também. 

O consumismo é ainda a chave para a paz social nos EUA, como o sr. diz no mesmo livro? 

Austeridade reduz o padrão de vida, o consumo, a produção e o emprego. Torna as coisas ainda piores. Mas EUA e Europa estão engajados na política da austeridade, e isso está perpetuando a crise. Mas há uma lógica por trás na perpetuação da crise: as pessoas poderosas e influentes se beneficiam dela. Os ricos estão indo muito bem. Portanto, perpetuar a crise é uma forma de perpetuar seu crescente poder e sua crescente riqueza. 

Em "The Limits to Capital" (1982), o sr. descreve a dinâmica do capital. O poder das finanças cresce com a crise? 

Sim. O capital financeiro é hoje importante como nunca foi. Mais ativos serão fornecidos ao setor bancário. Quando é preciso mais dinheiro, o Fed [banco central dos EUA] aparece com um trilhão de dólares e joga no mercado. 

Portanto, não há limite à capacidade de criar o poder do dinheiro. Há limites em muitas outras áreas: recursos naturais, produção de commodities etc. Não há limite ao poder do capital financeiro. 

O sr. está otimista? 

Sou otimista no sentido de que acredito que as pessoas vão reconhecer que há limites sérios no capitalismo e que é preciso considerar modos alternativos. De outro lado, a volatilidade é tanta que as pessoas podem tomar direções malucas, o que pode levar a autoritarismos e a sérias rupturas na economia. 

As ideias que o sr. defende não podem ser consideradas utópicas? 

Pode ser. Mas mesmo o pensamento dominante está começando a reconhecer que o nível de desigualdade que existe hoje não pode ser sustentado. Até pessoas muito ricas, como Warren Buffett, reconhecem que a desigualdade foi longe demais. 
Leia a íntegra da entrevista (folha.com/no1053440) 

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