segunda-feira, 10 de agosto de 2015

O Longo Aboio Por Joana Belarmino

Quando eu e o meu pai deixamos de nos falar, naquela semana de maio de 1993, ele não passava de um amontoado de células, músculos e pele, encharcados de medicamentos, na UTI do hospital de Bayeux, meu pai a tocar às portas da eternidade, eu, presa a um profundo sentimento de perda, desenraizamento, saudade antecipada.
            Houve uma tarde, uma cena, a qual não conseguirei nunca esquecer. Eu e o meu irmão Belo, cada um do lado da cama de utei, segurando as mãos do meu pai. De repente Belo começou a cantar um aboio.
            Na voz cortada pelo pranto, as notas longas do aboio, a tanger o gado imaginário, a recordar o meu pai, moço, forte, o cigarro de palha entre os lábios, o relho na mão, o olhar paciente a guiar seu rebanho.
            Havia desamparo no canto do meu irmão. Mas havia também coragem. Coragem de romper o dique da alma, destapar a rolha da dor, entregar ao meu pai, no silêncio daquela uti, a última homenagem, cimentar aquela trajetória final do velho Mariano com lembranças de força, de vida.
            Meu pai amava o gado, a terra, as cercas que erguia para abrigar os rebanhos, em tantos finais de tardes da sua vida de agricultor.
            Tantos anos passados, a lembrança daquela tarde, daquele aboio, ainda acorda em mim o rio das lágrimas que então despejei, como chuva a regar a saudade que já se fazia posseira do solo da minha alma.
            Naquela tarde, enquanto segurava os dedos calosos do meu pai, deixei que as lembranças boas da nossa vida viessem todas para fora, empurrando a dor, arrancando a tristeza, como se fora erva daninha. Lembranças da infância, das covas de milho que meu pai me ensinou a cavar e semear. Lembranças da caverna cheia de brisa onde eu e os meus irmãos passávamos o dia, enquanto o meu pai trabalhava no roçado. Lembranças do seu velho chapéu, cheio dos melhores umbus maduros. Lembrança melhor, do pão doce da feira de quarta-feira, que ele trazia para nós.
            Também naquela tarde, como agora, experimentei a saudade transformando-se, suavizando-se, sendo como o crepitar doce e alegre das fogueiras que meu pai fazia.
            O longo aboio do meu irmão, como a querer tanger o meu pai à sua última morada, a tarde quase a esmorecer, uma brisa suave a alisar as folhagens, eu a querer novamente lavar os pés do meu pai, a limpar-lhe as sujidades da terra, depois de um dia duro de trabalho.
            Meu pai se foi, dois dias depois daquela tarde, e a doçura da saudade que sinto, tem as notas plangentes daquele aboio, e o calor do crepitar das suas fogueiras. Tantos anos passados, mas, vez em quando, surpreendo-me a sentir o calor das suas mãos, conduzindo meu destino.

Fonte: texto integral - http://blogln.ning.com/profiles/blogs/o-longo-aboio

Um comentário:

Belarmino Mariano disse...

PATERNAGEM
Felizes são os pais, mães e filhos que se amam!
Com texto de Joana Belarmino de Sousa, minha querida irmã, aproveito para dizer que meu papai já está cultivando os jardins do desconhecido. Seu Mariano Belarmino e dona Gessi, minha mãe amada. Hoje passei o dia refletindo sobre a ideia de HOMEM - Coletivo de Consciência Masculina, com forte tendência contra o Machismo e contra o patriarcado. Mas o choque era tentar entender se isso implicava na ideia de ser contra o pai. Depois vi que não tinha nada haver, pois ser paí, ser mãe é muito maior do que qualquer preconceito. Hoje é um dia meramente comercial, em que o mercado se aproveita dos sentimentos e emoções para atrair mães e filhos, para as lojas de artigos masculinos. Então se faz "O dia dos pais". Hoje sinto o quanto é valioso ter filho e filhas, mesmo que estejam nesse mundo conturbado. Hoje vi muitas fotografias e revirei memórias do meu menino rapaz Vitor Hanael, que nesses novos arranjos familiares, vive com sua mãe e o vejo, bem mais pelas redes sociais, do que pessoalmente, pois moramos há alguns quilômetros de distância. Nesse sentimento de distância sinto saudade do meu velho paí, tão distante e também tão perto, pois o vejo em pequenas coisas, como arames que amarra varas no quintal, enxada e coisas simples como cheiro de café, bolacha seca, rapadura e feijão macaça. Ele adorava um cigarro feito de palha e fumo de rolo, esse cheiro me lembra o meu velho pai. Quando encontro um velho que goste de um dedo de prosa, lembro muito o quanto ter pai, ser pai é significativo. Ao lado de minha amada Erica Mariano, que também perdeu seus queridos pais e avós. Comento sobre esse ser pai, quando vejo minha pequena Luisa Mariano, agarrada em minha barbicha dizendo que eu sou lindo; ou quando Brenda Mariano me aparece com umas conversas amatutadas, como lembro do meu velho pai. Ela só perde em prosa para Monica Guedes e Alexandre Moca, que ganha das duas, mas num tete-a-tete com o velho Mariano Belarmino, tenho certeza de que varariam a noite e a prosa não acabaria. Compartilho com meus manos das redes sociais: Suzi Belarmino (Manoel Belarmino), Luiz Belarmino, Amanda Belarmino De Souza (João Batista Belarmino), Cidoca Bonfim, (Maria e Inácia Belarmino), Lica Bomfim, Celia Camposs (José Belarmino), Lau Siqueira, Belarmino Rosi (Raul Belarmino), Mary Lima (Raimundo Belarmino). Com esse pequeno texto, gostaria de saudar os velhos e os jovens pais. In memoriam "Aquele que me fez -

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